quinta-feira, 29 de março de 2012

MARIA ESTELA GUEDES NA VESPERA DE EU SER INICIADA


NA VÉSPERA DE EU SER INICIADA

Na véspera de eu ser iniciada  
Receando qualquer percalço físico
A mim mesma repetia
A tão nítida chapa fernandina
À mingua de modelo verdadeiro:
Neófito, não há morte!
Sim, porque o carvão não é inofensivo
Faz fagulhas, o lume crepita a vermelho e azul
Sobre o veludo negro da morte
E o sangue mostra os dentes, seja em fio ou borbotões
Enfim, pensava, à falta de outro conforto
Que o neófito não morria, e não morre realmente,
Apesar de, defunto,
Ir vogando entre flores num caixão cheio de luzes
Como dos barcos ao longe
Dos barcos ao longe carregados de flores
Fala esse outro lampião, Camilo Pessanha.
Na véspera de eu ser iniciada, temia,
Para enganar o terror, sujar a melhor roupa
A cavar a minha própria sepultura
Em terra húmida, de lama esverdeada,
E a nela me deitar ao comprido, como quem à cama regressa
Depois de nela ter nascido.
Sim, porque não é fútil o carvão
Ele queima e deita faúlhas
E no petiscar vermelho e azul da sua chama
Dormem lobos maus de negro sorriso.
E então eu pensava, nesse verdadeiro raciocínio
Saído como poucos do húmus de Fernando Pessoa
Que a morte iniciática não era morte
Como realmente não é
Apesar de temer que ela me arreganhasse os dentes
Ao cavar por minhas próprias mãos a cova onde me deitaria
Assim a rachadora rachando lenha para se queimar
O lume acende com achas de cedro
O incorruptível - apesar de falso - Cupressus lusitanica
Negra lama lume lento lábios frios
Ei-la, gélida, que com mão escanzelada me levanta
E só dentes e perna de pau avisa:
Neófita, levas uma punhalada se não morres!
E como foi estranho e espantoso
Representar afinal o papel de Lucy no "Ofício das Trevas"
Ali jazendo, com a lápide pesada contra o coração
A respirar com dor, ouvindo
Morta jazida num berço a vogar no Nilo
O rio que é essa fita de água estendida no deserto
Entre duas tiras verdes de tamareira
Phoenix - será Phoenix? - talvez seja, mas não a reclinata
Ali deitada, a Fénix, no negro de uma obra alheia, ouvia
O hino a Osíris, Sol que se despede e ao outro dia regressa,
Os membros decepados e arremessados para todos os
Vales e climas
Assim a minha alma estagnava na língua dos mistérios
E morria como Osíris, tão estranho, tão estranho não poder invocar
Nem pai nem mãe de carne, o Sol pesava de encontro ao coração
Muito mais que ligeira pena de avestruz na balança de Anúbis
Eu era aquela morta em absoluto falecida
Que noutro mundo tão recuado para fora deste
Comezinho mundo de fetos
E urtigas confessava
Lucy também se confessa em negativo
Não, eu não matei
Não, eu não dormi com a mulher do meu primo
Nego, eu não suspirei pelo filho do teu genro
Como outrora, a químico, a escrita trespassada para outro lado
Do papel se chamava negativo
Nego o que na igreja se afirma
Ao contrário, renego a mentira, não quero a hipocrisia
Nunca se cruzam as mãos, nunca
Tudo ao contrário, como na confissão
E então a lua de chifres na frente
Aqueles dois cornos imensos
A enrolarem-se de luz nas sombras da Floresta Negra Curitibana
Ladrava de noite entre as hastes esguias das acácias
Manchadas de branco como caiadas
Para curar as feridas
Minha Mãe, a Lua, meu Pai, o Sol,
Como podia eu morrer à vossa frente, neste fato negro de cima a baixo
A noite - meu P.'.M.'. - a Noite era eu, ali despida, e o balandrau atirado
Para o céu, fazendo nuvens, eu, morta, enterrada até às últimas letras
De uma estrofe interminável
Eterna
Lua
Diuturnamente assassinada
Como Hiram o foi um dia
E todas as noites ressurrecta
Dessa morte que para o neófito inexiste
Minha Lua Lua ó Lua quem és, Lua?
Lua, Lua sou eu.
Maria Estela Guedes

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